Mouzar Benedito da Sociedade dos Observadores de Saci – Sosaci nos fala como isso pode acontecer
No dia 31 de outubro é comemorado o Halloween. A data, celebrada em países de língua anglo-saxônica, tem ganhado força no Brasil graças a influência dos costumes norte-americanos. Mas por que não transformar esse evento em algo mais brasileiro? Conversamos com o jornalista Mouzar Benedito, que atua em defesa à valorização folclórica por meio da ONC (Organização Não Capitalista) Sociedade dos Observadores de Saci – SOSACI. Colunista quinzenal do Blog da Boitempo, Benedito é autor de diversos livros que tratam sobre o folclore nacional, como “Saci, o guardião da floresta”, “O tropeiro que não era aranha nem caranguejo” e “Pobres, porém perversos”. Durante a Festa do Saci 2019, que acontece em São Luiz do Paraitinga de 25 a 27 de outubro, o escritor lançará a nova obra “Boitatá e os Boitatinhas”. Em entrevista exclusiva ao Festanejo, Mouzar também falou a respeito das tradições caipiras e o resgate de nossa cultura. Confira:
Qual a importância em preservar a tradição sertaneja em nosso cenário folclórico atual?
Acho que em primeiro lugar é preciso recuperar o sentido da palavra sertanejo, hoje identificada com um gênero musical que não tem nada a ver com a cultura caipira – cuja música passou em um certo momento a ser chamada de sertaneja e depois ganhou o adendo “universitário” – e nem com o sertanejo nordestino. A cultura caipira tem história e estudando essa cultura entendemos muito de nós mesmos, especialmente de São Paulo, Minas Gerais e partes de Goiás, Paraná e Mato Grosso do Sul. Até o nosso dialeto deixaria de ser visto com preconceito, pois representa uma herança indígena mesclada com o português e enriquecida por línguas africanas e mesmo o espanhol.
Enfim, preservar a tradição, aceitando uma evolução inevitável, ajuda a nos conhecermos melhor e a respeitar nossas origens e nosso povo.
O que poderia ser feito para que a nossa cultura folclórica seja mais prestigiada?
Peitar a cultura de massas é difícil, ela é muito poderosa e não temos canais de comunicação capazes de competir com ela. Não tenho uma fórmula pronta para fazer com que a cultura popular não ligada à exploração comercial seja mais prestigiada. O que fazemos na Sosaci – Sociedade dos Observadores de Saci – é estudar, divulgar como nos é possível e promover essa cultura. A Festa do Saci, em 31 de outubro é uma dessas iniciativas. Desde 2003, fazemos essa festa em São Luiz do Paraitinga, mas há muitos outros lugares que também a festejam, desde municípios de vários estados até escolas públicas e privadas. Nelas, valorizamos os seres do imaginário popular brasileiro, fazemos estudos e seminários sobre a cultura caipira, dentro dos limites da nossa falta de estrutura, fazemos palestras… E escrevemos livros também. E contamos com o apoio de uma parcela pequena mas significativa de jornalistas e professores.
Com tantos ritmos dominando o cenário musical no Brasil, você acredita que a música caipira foi deixada de lado?
A música caipira resiste em alguns nichos e em meios específicos, há até uma cadeira de Viola Caipira na USP, cujo titular é o violeiro Ivan Vilela. Mas na televisão e no rádio, não se ouve mais quase nada da música caipira. Sertanejo universitário, funk, axé e pagode… Parece que só existe isso hoje de música feita no Brasil. Claro, no carnaval tem o frevo em Pernambuco, marchinhas em São Luiz do Paraitinga, sambas-enredo… Fico na dúvida: o sertanejo atual é um modismo que vai passar? Acho que deve durar muito e, por contraditório que possa parecer, enquanto isso a música caipira é ouvida em meios mais cultos.
Você faz parte do movimento para termos o saci ao invés de símbolos americanos na época do Halloween. Acha que esse movimento tem crescido?
A Sosaci, criada em 2003, teve uma ascensão rápida, influenciou bastante gente, tanto que 31 de outubro aparece como dia do ‘raloín’, mas também como Dia do Saci. Na verdade, Dia do Saci e seus Amigos (Iara, Boitatá, Curupira etc.). Agora passamos por uma certa estabilização, sem muitos avanços. Mas surgiram muitos livros sobre o Saci e, em praticamente todos eles, citam o 31 de outubro como Dia do Saci.
No Brasil, temos comemorado cada vez mais o Halloween, festa tradicionalmente americana. Além do saci, como poderíamos deixar essa data mais brasileira?
A invasão cultural, representada por essa festa dos Estados Unidos, começou nas escolas de inglês para crianças, lá pelos anos 1980. Até aí, normal. Cursos de línguas devem mesmo tratar da cultura dos países que as falam. Mas a mentalidade de submissão a valores gringos foi tomando conta e com o tempo passou a ter festa do Halloween até em escolas rurais brasileiras, sem ninguém saber o que ela significa. Dinheiro público sendo gasto em valorização de uma cultura que não é nossa. Isso foi uma das causas da fundação da Sosaci. E declaramos o 31 de outubro como Dia do Saci de propósito, para as pessoas pensarem nisso. Não temos nada contra as festas de outros povos e o próprio Halloween tem um significado muito forte para os descendentes dos povos celtas. Irlandeses encaram o Halloween, creio que pode-se dizer, religiosamente. Levada por esses povos para os Estados Unidos, assumiram um caráter comercial como tudo que se faz lá. Então essa coisa virou típica de lá.
Um detalhe: em Santa Catarina há uma tradição de bruxas que vem desde a colonização, com mulheres sábias (parteiras, grandes conhecedoras de ervas medicinais etc.), trazidas dos Açores, herdaram de suas ancestrais esses conhecimentos, e são consideradas bruxas. Essas ancestrais não foram queimadas pela Inquisição porque eram de Portugal, país que “precisava” colonizar os Açores e preferiram mandá-las para lá, em vez da fogueira. Pois as bruxas, legítimas, de Santa Catarina, odeiam ser comparadas às do Halloween e comemoram o 31 de outubro em parceria com o Saci…
Ah… Vocês repararam que aqui uso Halloween, mas normalmente usamos raloín? Aportuguesamos.
Qual o papel das escolas na valorização do folclore desde criança?
Na escola, bons professores podem despertar e/ou incentivar as crianças a conhecer melhor nossa cultura. Nestes tempos em que queimadas propositais e incentivadas das florestas, do Cerrado e dos campos provocam reações e revoltas em muita gente, é interessante mostrar a mitologia tupi, por exemplo, em que seus entes imaginários são protetores do meio ambiente. O Curupira, protege as matas; o Caipora, os animais; a Iara os animais das águas doces (e portanto as próprias águas, pois esses animais precisam de água para viver, e água limpa) e assim por diante. Muitas escolas já fazem isso, e há muitos livros também. Em vários lugares, perguntei para crianças sobre o Curupira, a Iara etc., e elas sabiam bem o que são.
Onde podemos encontrar mais conteúdos sobre a valorização folclórica, e de quais formas podemos ajudar na sua valorização?
Nos livros, na contação de história (nossos contadores fazem sucesso nisso), nas conversas com caipiras legítimos e com estudiosos também, com qualquer um que entenda e goste. Qualquer jornalista que faça uma matéria correta sobre nossa cultura está ajudando na sua valorização. Qualquer programador de rádio ou TV que meta uma música caipira legítima nos seus programas, ou que faça matérias sobre isso, também está contribuindo.