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[EXCLUSIVO] Novas cores no sertanejo: Alice Marcone conta sobre o movimento queernejo

Artista é uma das principais promessas do segmento que busca trazer diversidade ao gênero

Dentro do sertanejo, diversas vertentes têm ganhado força.  Uma delas é o chamado queernejo: grupo de artistas LGBTQIA+ que produzem música do gênero.

Com outros segmentos, como o “sapanejo”, “pocnejo” ou “travanejo”, o objetivo do movimento é cantar sobre a diversidade brasileira e, assim, quebrar padrões de gênero e sexualidade no mundo sertanejo, dominado por homens, brancos e héteros.

Em suas canções, os jovens cantores do queernejo fazem as pazes com suas raízes rurais além de inserirem novos elementos em suas produções, como ritmos de funk e pop.

Apesar de recente, a comunidade já possui nomes influentes e ativos na busca por mudanças no cenário musical. Alice Marcone é um dos talentos que traz mais cores ao universo sertanejo.

Representante da letra T da sigla, Alice é uma mulher trans, e já mostrou que veio para ficar. Além de cantora, é atriz e roteirista, deixando sua marca nas séries “Manhãs de Setembro” (Amazon Prime Vídeo) e “De Volta aos 15” (Netflix). Em 2020 lançou o primeiro single, “Noite Quente”, que já possui mais de 30 mil visualizações no videoclipe oficial.

A cantora conversou com exclusividade com o Festanejo e falou sobre a carreira, a vivência musical e o futuro do queernejo.

Como começou sua carreira? E porque escolheu o sertanejo?

Minha carreira na música começou em 2016, com o EP “Entre Espelhos” de um projeto chamado Mona e Outros Mares, em que eu explorava sonoridades mais eletrônicas e alternativas. Depois de 3 anos, com o projeto “Mona e Outros Mares” interrompido, mas já tendo ocupado certo espaço no mercado audiovisual, fiz a trilha sonora original “Amapô” para a série “Toda Forma de Amor”, do Canal Brasil.

Foi só em 2020 que eu comecei a lançar músicas sertanejas. Meu primeiro trabalho no gênero foi “Noite Quente”, e o segundo e mais recente, “Pistoleira”.

Decidi fazer sertanejo porque entrei num movimento de resgatar minhas raízes – nasci em Valinhos e cresci em Serra Negra, interior de São Paulo, num sítio da zona rural da cidade – e fui reconhecendo que essa sonoridade fazia muito parte da minha vida.

Então, decidi explorá-la. Também tinha algo de instigante (ao mesmo tempo que triste, era desafiador) em me perceber a primeira mulher trans a fazer sertanejo. 

Como escolhe as músicas e composições que vão integrar seu repertório?

Tenho um processo bem autoral de composição. Mesmo quando trabalho com outras pessoas, tenho um conceito, uma ideia muito bem direcionada para a música. No processo de produção do meu primeiro álbum de estúdio, no qual estou agora, cada faixa parte de uma criatura do folclore como metáfora para falar de amor, afeto e questões de gênero.

Então, uma vez com esse conceito definido, passo a procurar o ritmo, os acordes, a letra e a melodia que vão me ajudar a transmitir essa ideia. Posso descartar algumas das composições nesse processo e recomeçar, tentando acertar numa outra tentativa, mas o conceito quase sempre se mantém o mesmo.

Quando faço lives e coloco covers em meu repertório, privilegio músicas cantadas por mulheres importantes na história do sertanejo, como Roberta Miranda, Paula Fernandes e Marília Mendonça, e também músicas de meus parceiros do queernejo, Gabeu, Reddy Allor, Gali Galó, etc..

Quais músicas e artistas te inspiram?

Minhas inspirações vão do sertanejo a muitos outros estilos musicais: pop, r&b, mpb, eletrônica. Acho difícil eu citar apenas alguns, pois eu realmente sou muito eclética e admiro muita gente diferente: Sade, Clube da Esquina, Paula Fernandes, Almir Sater, Ana Carolina, Björk, Lana Del Rey, Luan Santana, Marília Mendonça, Ariana Grande, Liniker, Linn da Quebrada… Mas se tiver que citar uma referência máxima, talvez seja Lady Gaga, justamente por ela ser uma artista tão camaleônico que se permite explorar em diferentes musicalidades ao longo da sua carreira. 

Já passou por uma situação de preconceito por ser uma voz LGBTQIA+ no sertanejo?

Sim. Não vou citar uma situação específica, mas acredito que esse preconceito venha de vários lados: vem do lado de pessoas LGBTQIA+ supostamente progressistas que não acham que uma travesti possa cantar sertanejo, por ser um gênero “retrógrado”, “caipira”; assim como vem do lado de sertanejos mais conservadores e machistas, que não acham que pessoas LGBTQIA+ possam fazer sertanejo. 

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O mundo sertanejo sempre foi machista em sua essência. Como fazer essa situação mudar por meio da música?

Acredito que minha estratégia seja cantar sobre amor, afeto, sentimentalismos, romantismos, dores de cotovelo e arrastação de chifre, como uma boa sertaneja. Sendo uma mulher trans, cantando sobre amor num gênero musical que alcança tanta gente, acredito que esse sentimento possa mobilizar e transformar todo mundo que escuta.

Também vale dizer que sou uma mulher heterossexual, que se relaciona com homens heterossexuais, então confronto e convoco esse cabra macho estrutural do sertanejo constantemente para minhas composições, em interlocução direta, seja para confrontar, seduzir, superar amarras ou apenas curtir. 

Na sua visão, o que falta para o chamado queernejo atingir o público mainstream do sertanejo?

Acho que a resposta pra isso é muito simples: “capital”. A maioria dos sertanejos que alcança o mainstream atualmente está sustentada por um mercado fonográfico gigantesco. Todos nós do queernejo, hoje, somos artistas independentes, e nossos números nunca serão iguais aos dos artistas de gravadoras no mainstream por uma questão de capital e investimento, mesmo.

Isso vai mudar quando o mercado perceber o potencial do nosso movimento – que vem ganhando cada vez mais destaque na mídia, espontaneamente – e ter um entendimento de que nós podemos unir mundos muito diferentes: ou seja, levar o sertanejo a um público ainda maior. O queernejo pode unir públicos diferentes e trazer ao gênero novos consumidores, que geralmente não o consumiam justamente por sua tradicional heteronormatividade.

O fato de sermos uma novidade tão fresca pode assustar, mas já estamos vendo cada vez mais artistas consagradas do sertanejo saindo do armário, como Paula Mattos, Lauana Prado e Luíza (da dupla Luíza & Maurílio); e acho que isso pode ser um sinal de que o queernejo é um movimento que realmente veio se integrar e transformar o sertanejo. 

Além de cantora e atriz, você também atua como roteirista das séries “Manhãs de Setembro”, “De Volta aos 15” e “Noturnos”. Como é trabalhar nessa outra área do audiovisual?

O audiovisual talvez seja minha principal atividade profissional, já que é onde eu consigo juntar os recursos para construir minha carreira de cantora. E, de modo geral, vejo minha carreira de cantora como uma extensão da minha atuação no audiovisual: meu prazer, minha paixão, é contar histórias.

Seja por palavras, imagens, pelo meu corpo ou pela minha voz. Sonho com o dia em que todas essas formas de me expressar (música, atuação e escrita) estarão totalmente integradas. Na música, já faço isso com meus videoclipes, que têm uma pegada bastante cinematográfica. Agora, espero poder levar a minha música para o cinema e para as séries cada vez mais.

Apesar de bem jovem, você já conquistou um grande público. Como é o seu contato com os fãs?

Eu adoro conversar com as fãs mais ativas que, em sua maioria, são pessoas LGBTQIA+ e aliadas da causa dos interiores, que pela primeira vez se veem representadas no sertanejo. É nesse contato que eu percebo que o meu trabalho faz sentido, que todo esse esforço vale a pena. 

O que podemos esperar da Alice Marcone em 2021? Teremos novos lançamentos e projetos?

Em 2021, por conta da pandemia, meus projetos autorais musicais foram bastante prejudicados. Mas já estou retomando as atividades e devemos ter o lançamento de mais um ou dois singles sertanejos ainda esse ano. O meu primeiro álbum completo vai ficar só para 2022, ano em que também deve estrear a série “De Volta aos 15”, na qual fui roteirista e atriz.

Tags: alice marcone | entrevista | LGBTQIA+ | queernejo
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